Perspective Galerie, Porto
Curadoria de Raquel Guerra
(…) «fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não sejanatureza. Tudo é natureza.»
Ideias para adiar o fim do mundo, AiltonKrenak (p.16-17)
Avaliar a relação que a humanidade estabelece com a natureza será um dos mais significativos indicadores do seu estado civilizacional. Ao substituirmos uma tipologia de relação ancestral humanidade/natureza, baseada quer na personificação dos elementos naturais, quer na admiração e no respeito do humano pelo natural, por uma tipologia de relação de caráter exclusivamente extrativista, caminhamos, a passos largos, para o grau zero da civilização, porque, nesta tipologia de relação, aquela deixará de existir.
Para a exposição Da natureza, com a natureza recorremos a um conjunto de obras de sete artistas – Éléna Salah, Juan Manuel Rodriguez, Lucile Martinez, Luís Troufa, Maria Lino, Martinho Costa e Osias André – para nos ajudar a formular uma visão poeticamente engajada da relação humano/natureza. As representações da natureza (e do meio natural), ora exuberantes, ora trágicas, que aqui apresentamos, aliam dimensão estética e comprometimento sem que nenhum destes aspetos seja menorizado. Em vez de confrontar de forma direta o público com as consequências da exploração desenfreada da natureza, convidamos quem visita a exposição a refletir sobre o que perderá caso não assumamos a luta pela natureza como prioridade. Colocamos o foco no contraste entre o estatuto poético das obras apresentadas e a seriedade (e gravidade) da temática.
Na construção desta exposição, que inaugura na cidade do Porto uma extensão da Perspective Galerie, de Paris, não conseguimos ficar indiferentes ao edifício que acolhe esta galeria-hotel. O Palacete Ricardo Severo, projetado pelo arquiteto com o mesmo nome para sua habitação, é uma construção do início do século XX rodeada por um belíssimo jardim. Neste projeto expositivo interessou-nos, por isso, prolongar a experiência do jardim no interior.
Da natureza, com a natureza propõe três linhas exploratórias (ou perspetivas). A dos artistas Juan Manuel Rodriguez, Lucile Martinez e Martinho Costa, na qual, através da pintura de paisagem, revelam a sua relação com a natureza. Apesar de genericamente a pintura de paisagem traduzir visualmente a relação dos artistas com o meio natural que os rodeia, a ideia de paisagem destes artistas é mais abrangente na medida em que nos remete para um conjunto de escolhas (conscientes) de projeções e sentimentos. Mencionemos a este propósito as obras de Lucile Martinez Refuge #Aspin, Refuge #l’Etale, Refuge #Tardevant, títulos reveladores do significado que a natureza tem para a artista. A matriz das suas representações são locais específicos, mas mais do que nos apresentar locais eventualmente reconhecíveis, Martinez apresenta um espaço natural repleto de autorreferências.
De referir o uso de fotografias como matriz na prática pictórica destes três autores, remetendo para uma ideia tradicional de pintura de modelo. Tradição e modernidade lado a lado.
Uma segunda linha exploratória desta exposição é a que nos remete para uma dimensão poeticamente trágica da relação humanidade/natureza. Incluímos nesta linha Eléna Salah e Luís Troufa. Embora com trabalhos formalmente muito distintos, a matriz conceptual das obras destes autores está mais próxima do que à primeira vista possamos considerar. Salah apresenta quatro séries - Les Ondes Silencieuses, Les Témoins, Herbier e Cellules - nas quais questiona a relação entre a perceção de conceitos como a memória, a ruína e o trauma e a possibilidade da sua representação. Através de representações de paisagem a artista apresenta uma narrativa centrada na história (traumática) do lugar. Formalmente a fotografia está sempre presente, embora a dimensão escultórica prevaleça em todas as obras. Luís Troufa apresenta trabalhos de três séries - Cortex Fungus, Enxertia e Nocturno – nos quais propõe uma reflexão pictórica sobre a condição humana. O artista recria uma tipologia de relação (possivelmente) traumática entre o humano e a natureza, fazendo referência a uma espécie de união-invasão. Mencionemos a este propósito as séries Cortex Fungus e Enxertia – em ambas as séries um elemento natural/vegetal, num caso um fungus no outro um ramo de árvore, está associado a uma figura humana. Ao ver estas pinturas podemos questionar se se trata de uma relação de simbiose ou de parasitagem. União ou invasão?
Para a realização das pinturas da série Cortex Fungus, Troufa usa como modelo de atmosfera e cor frames do filme Stalker (1979), de Andrei Tarkovsky. A dimensão simultaneamente trágica, obscura e ambígua deste filme, que Luís Troufa incorpora magistralmente nas suas pinturas, reforça o dramatismo desta série.
Maria Lino e Osias André integram a terceira linha exploratória da exposição Da natureza, com a natureza. A relação humano/natureza que nos interessa destacar nesta linha é a de comunhão, do viver e estar na natureza de forma harmoniosa. Lino, quando regressa à sua aldeia natal, Feital, depois de quase 30 anos a viver e a trabalhar na Alemanha, confronta-se com uma, para si, dura realidade: não terá possibilidade, por razões de ordem diversa, de continuar a ter modelo vivo na sua prática artística. Ora, habitando literalmente no meio da natureza, os seus modelos passam a ser os elementos naturais que a rodeiam e com os quais convive (de forma harmoniosa) quotidianamente: as plantas e os animais. É neste contexto que devemos analisar as obras de Maria Lino presentes nesta exposição, nomeadamente a série de desenhos de cigarras ou o desenho de um ramo de kiwis. Impõe-se uma referência às duas pinturas a óleo presentes na exposição - por um lado, por se tratar de uma faceta artística menos conhecida de Lino, por outro por se tratar de obras que, na sua génese, não se relacionam diretamente com a natureza. Assim sendo, por que as incluir na exposição? Produzidas aquando da sua chegada à Alemanha, estas obras de caracter abstratizante partem da observação de pessoas a assistir a corridas de cavalos. Estas pinturas são pormenores dessas pessoas, desses modelos vivos. Ao fazermos a seleção de obras para a exposição consideramos que estas pinturas, embora abstratas, possuíam muitos dos referentes associados à pintura de paisagem: o azul no topo remeteu-nos para o céu, as formas geométricas para as montanhas e a presença do verde, cor indissociável da natureza.
Osias André apresenta um conjunto de pinturas que remetem para uma forma harmoniosa de estar na e com a natureza. Destacamos a obra Sem título, de 2022, que representa um casal, concretamente uma mulher e um homem, que correm nus na natureza cumprindo um ritual tradicional da sua terra natal, Moçambique. Neste ritual os casais, como forma de celebração e de catarse conjugal, correm nus na floresta expondo os seus corpos aos elementos naturais.
A pintura, o desenho e a escultura-fotografia são as ferramentas operativas desta reflexão. Da ambiguidade dos retratos-natureza de Luís Troufa, da reinterpretação da paisagem de Lucile Martinez, Martinho Costa e Juan Manuel Rodriguez, do estar na natureza de Maria Lino e Osias André e da poética da ruína de Élenah Salah se faz Da natureza, com a natureza.
Raquel Guerra